17.12.13

Ainda toda quente da roupa tirada
Fechas os olhos e moves-te
Como se move um canto que nasce
vagamente mas em toda a parte

Perfumada e saborosa
Ultrapassas sem te perder
As fronteiras do teu corpo

Passaste por cima do tempo
Eis-te uma nova mulher
Revelada até ao infinito.



paul éluard

26.11.13


A vida tem lágrimas pesadas como árvores…
A sombra avança no atalho como um formigueiro.
Tuas pernas estão vermelhas de frio na paragem do eléctrico.

Felizmente existe a noite e a tua chegada.
O anjo estático não é mais que um boneco de pedra.
O calor da tua boca reinventa o estio.

Egito Gonçalves

22.11.13

I

Vou pôr anúncio obsceno no diário
pedindo carne fresca pouco atlética
e nobres sentimentos de paixão.
Desejo um ser, como dizer, humano
que por acaso me descubra a boca
e tenha como eu fendidos cascos
bífida língua azul e insolentes
maneiras de cantar dentro de água.
Vou querer que me ame e abandone
com igual e serena concisão
e faça do encontro um relatório
ou poema que conste do sumário
nas escolas ali além das pontes
E espero ao telefone que me digam
se sou feliz, real, ou simplesmente
uma espuma de cinza em muitas mãos.

António Franco Alexandre

12.11.13

XI

[...]

Que caminhadas. Que sangramento de passos.
Que cegueira pretendendo
Seguir teu próprio cansaço. Olha-me a mim.
Antes que eu morra de águas, aguada do que inventei.

Poemas malditos, gozosos e devotos. [Hilda Hilst]
Querido _ .

O tempo me ensinou a esquecer os ossos velhos.
Tudo parecia poético e cercado de delicada fúria. O elo se desfez na dança dos dias. Não havia mais sedução, nem ânsias. Eu de desgostosos beijos. Eu enfadada pela descrença. 
Onde foram parar as lavas do desejo ou as borboletas dos meus olhos? 
Tu partirias.
Eu já estava vazia de ti

L.
Canção - Murilo Mendes 

Para o Oriente do amor
Meus sentidos aparelham.

Bandeiras azuis, vermelhas,
Cruzaram-se no horizonte.
De onde vem tal embriaguez,
Que aurora terei tomado?
Vem do fundo de mim mesmo,
Vem da minha alma correndo.

Minha amada na varanda
Arrulha, me faz sinais.
Voo com abril nas mãos,
Para continuar o ciclo
De antiga revolução:
Aboli as dissonâncias,
O sentimento renasce
Como no início do mundo.

(Livro: As metamorfoses - 1938)
não colher as mãos, alimentar os objectos.
tocá-los devagar, deixando o fio correr desde
o ar até à ponta dessa sombra onde repousa
o mundo. tenho a certeza de que algo se
mexe no silêncio. olho uma vez. olho uma vez.
sei que falas com as coisas. que tens um pacto
com as rãs, outros pequenos animais, certos verdes
hereditários gestos. que nem que quisesses me
poderias contar. e sei de tudo limpo e é para ti que
inclino as mãos quando percorro as cidades e as
esqueço. esta pequena saudade é uma floresta
de silêncios. sou capaz de adormecer sobre o fogo.

Rui Costa
No meio-dia te penso
Íntima te pretendo.
Incendiada de mim
Contigo morrendo
Te sei lustro marfim e sopro.
E te aspiro, te cubro de sussurros
Me colo extensa sobre tua cabeça
Morte, te tomo.

E num segundo
Ouvindo novamente os sons da vida
Nomes, latidos, passos
Morte, te esqueço.
E intensa me retorno sob o sol.

H.H in Da morte. Odes mínimas
Estou nu diante da água imóvel. Deixei minha roupa
no silêncio dos últimos ramos.

Isto era o destino:

chegar à margem e ter medo da quietude da água.



Antonio Gamoneda

6.11.13






Folie à deux
Querido E.

Acordei com o frescor da manhã.
Os caminhos tem flores e sigo a infinita procura
Tenho recordações das nossas tardes de estação e perco-me nas lembranças.
Tem cuidado comigo,
essa alma peregrina.
Toca-me, apenas, enquanto respiras.
Conta-me do teu humano desejo.
Encaixa os teus sentidos nos meus inventos.

Com todo amor,

Sofia.

* um escrito dedicado ao espetáculo ESQUIZOFRENIA, que arrastou-me para águas profundas.
 — com Morgana Poiesis e Carona Teatro Itinerante.
C.

Enlouqueço devagar com os dias.
Tenho pensado nas nossas conversas e no tempo que reservamos para dialogar sobre os sonhos. 
Minhas certezas desfalecem, você me estimula a viver o agora, e é o que tenho feito.
Escreva-me.
Beijo-te debaixo do ipê amarelo.

No amor,

F.
Senhor…

Senhor, o amor é uma coisa que mete medo
não sabeis pois que se trata de um trabalho difícil
exige uma coragem e uma fé além do improvável
uma humanidade indizível
uma fraternidade cega
dinheiro e garrafas
crianças ao acaso
olhares nem sequer fulminantes
e charcos de céu
e festas campestres
quando o tempo permite
o amor quer idas à pesca, patins e chocolate negro
o amor quer a curva suave e a facilidade
é tão difícil, Senhor
não poderia descrevê-lo
em toda a sua volúpia
para lá dos seus mártires
e dos seus desastres hipócritas
o amor é pleno de alegria
e segue o seu caminho
na névoa dos primeiros passos
na roupa pendurada no inverno
na corda tensa
vai para onde calha
e muito lentamente
lentamente demais o amor segue
como um ouriço do mar oco cheio de areia
como um botão que se deixa por coser
é miserável
é uma pluma
move-se ao vento
quando o coração bate
é esplêndido lavado pela maré
mesmo na maré odiosa
é onda
e é belo
é onda e é belo e cheio de algas
é o silêncio
é a luz
uma coisa assim vulgar

hélène monette via Blogue poesia
O OLVIDO

na outra margem da noite
o amor é possível

- leva-me -

leva-me entre as doces substâncias
que morrem a cada dia na tua memória

[Alejandra Pizarnik]
XI

[...]

Que caminhadas. Que sangramento de passos.
Que cegueira pretendendo
Seguir teu próprio cansaço. Olha-me a mim.
Antes que eu morra de águas, aguada do que inventei.

Poemas malditos, gozosos e devotos. [Hilda Hilst]

Primavera. 2013




22.10.13

“Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas lhe lembrava sempre o destino dos amores contrariados...” 

- Gabriel García Marquez

Cartas

Missivas à espera de remetente



O amor é esse bicho doido que você plantou dentro de mim. Eu disse que não queria, que não podia, mas foi tanta insistência que acabei sucumbindo. Agora estou aqui com poemas por toda a casa, o som no volume máximo ouvindo Marisa Monte, com todas essas esquisitices de um ser apaixonado. Não, não me diga que tudo isso passa. Não passa. Olha o que eu escrevi:

Essa coisa que aconteceu entre a gente
Incontinente: acho que foi ist(m)o

Vou ver as ruas, quem sabe o ar poluído me recupere de tuas purezas, dessa leveza que imantas nos gestos e nas palavras. Por enquanto hoje é sábado, neste calendário corroído de pretéritos. Te beijo com esta ânsia de tempestades.



[Assis Freitas]

26.9.13

'E se me faço ampla'





 'carrega-me contigo, pássaro-poesia.
quando cruzares o amanhã, a luz, o impossível
porque de barro e palha tem sido esta viagem
que faço a sós comigo'
a minha intimidade é pequena

A minha intimidade é pequena
cabe na minha boca
e desliza por entre os dentes;

se a descubro a fingir que é saliva
engulo-a,
não quero vê-la alheia nas palavras
nem perdê-la com um beijo.

ana merino
do sol, o sal
que saliva

cata o vento
das horas

na beira da voz
o nada
suspirado
da pele. fissuras

desabitam os espaços

Nossos poros

úmidos

de cristais vermelhos
VERDE PARAÍSO

estranha que fui
quando vizinha de longínquas luzes
acumulava palavras tão puras
para criar novos silêncios

[Alejandra Pizarnik - trad. Diogo V. Pinto]
http://player.vimeo.com/video/75075827

6.9.13

"Diz-me, porque não nasci igual aos outros, sem dúvidas, sem desejos de impossível? E é isso que me traz sempre desvairada, incompatível com a vida que toda a gente vive."

- Florbela Espanca

1.8.13

O rio é fresco em torno do corpo dele
Era ontem.
O primeiro poeta urinava seu amor
Seu sexo em luto cantava ruidosamente
As canções guturais
Das montanhas
O primeiro deus ereto sobre seu halo
Anunciava sua vinda sobre a terra esvaída
Era amanhã.

Joyce Mansour - De Dechirures (1955)
Receba minhas preces.
Engula meus pensamentos poluídos.
Purifique-me: que meus olhos se abram
Vejam o sorriso interior dos assassinos.
E uma vez pura
Judas crucifique-me.

[Joyce Mansour]

1.7.13

de meninos e bruxas



Hoje tenho a mão mais leve,
cansei de pesar sobre as coisas
o que meu peito e alma não puderam.
Levo ainda,por baixo de um segredo,
um par de coisas de que tenho medo,
são coisas bobas de menino,
como, por exemplo, ficar de ponta cabeça
e ver alguém se aproximando -parece bobo,
mas o que esperar de gente com a cabeça tão no céu?
E tenho medo dos caminhos mais seguros,
desde muito, muito menino,
pois lá é que sempre as coisas ficam chatas,
ficam como se sempre fossem a mesma coisa.
Lá, os rios pararam de correr e os meninos
chovem para dentro

19.6.13

A UNIÃO LIVRE



Minha mulher com o cabelo de fogo de lenha
Com pensamentos de relâmpagos de calor
De talhe de ampulheta
Minha mulher com a talhe de lontra entre os dentes de tigre
Minha mulher com a boca de roseta e de buquê de estrelas de última grandeza
Com dentes de rastro de camundongo sobre a terra branca
Com língua de âmbar e de vidro em atritos
Minha mulher com língua de hóstia apunhalada
Com a língua de boneca que abre e fecha os olhos
Com a língua de inacreditável pedra
Minha mulher com cílios de lápis de cor das crianças
Com sobrancelhas de borda de ninho de andorinha
Minha mulher com têmporas de ardósia de teto de estufa
E de vapor nos vidros
Minha mulher com espáduas de champanhe
E de fonte com cabeças de delfins sob o gelo
Minha mulher com pulsos de fósforos
Minha mulher com dedos de acaso e de ás de copas
De dedos de feno ceifado
Minha mulher com axilas de marta e de faia
De noite de São João
De ligustro e de ninho de carás
Com braços de espuma de mar e de eclusa
E de mistura do trigo e do moinho
Minha mulher com pernas de foguete
Com movimentos de relojoaria e de desespero
Minha mulher com panturrilhas de polpa de sabugueiro
Minha mulher com pés de iniciais
Com pés de chaveiros com pés de calafates que bebem
Minha mulher com pescoço de cevada perolada
Minha mulher com a garganta de Vale d’Ouro
De encontro no leito mesmo da torrente
Com seios de noite
Minha mulher com seios de toupeira marinha
Minha mulher com seios de crisol de rubis
Com seios de espectro da rosa sob o orvalho
Minha mulher com ventre de desdobra de leque dos dias
Com ventre de garra gigante
Minha mulher com dorso de pássaro que foge vertical
Com dorso de mercúrio
Com dorso de luz
Com a nuca de pedra rolada e de giz molhado
E de queda de um copo do qual se acaba de beber
Minha mulher com ancas de chalupa
Com ancas de lustre e de penas de flecha
E de caule de plumas de pavão branco
De balança insensível
Minha mulher com nádegas de arenito e de amianto
Minha mulher com nádegas de dorso de cisne
Minha mulher com nádegas de primavera
Com sexo de gladíolo
Minha mulher com sexo de mina de ouro e de ornitorrinco
Minha mulher com sexo de algas e de bombons antigos
Minha mulher com sexo de espelho
Minha mulher com olhos cheios de lágrimas
Com olhos de panóplia violeta e de agulha magnetizada
Minha mulher com olhos de savana
Minha mulher com olhos d’água para beber na prisão
Minha mulher com olhos de madeira sempre sob o machado
Com olhos de nível d’água de nível do ar de terra e de fogo.

Tradução: Priscila Manhães e Carlos Eduardo Ortolan

*

19.3.13

Corremos dentro dos corpos


Como  o sangue, corremos dentro dos corpos no momento em que abismos os puxam e devoram. Atravessamos cada ramo das árvores interiores que crescem do peito e se estendem pelos braços, pelas pernas, pelos olhares. As raízes agarram-se ao coração e nós cobrimos cada dedo fino dessas raízes que se fecham e apertam e esmagam essa pedra de fogo. 
Como sangue, somos lágrimas. Como sangue, existimos dentro dos gestos. As palavras são, tantas vezes, feitas daquilo que significamos. E somos o vento, os caminhos do vento sobre os rostos. O vento dentro da escuridão como o único objecto que pode ser tocado. Debaixo da pele, envolvemos as memórias, as ideias, a esperança e o desencanto. 

José Luís Peixoto, in 'Antídoto'

13.3.13

12.3.13

Espasmos


como respirar
o tempo
nesse corpo
sem asas

no ardor da madrugada
um silêncio branco
morrerei contigo




 da leitura do 'O Amor em Visita' do Herberto Helder

6.3.13





Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam voo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto;
alimentam-se um instante em cada
par de mãos e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...

[Mário Quintana]

4.3.13

3.3.13

Prelúdios-intensos para os desmemoriados do amor




Toma-me. A tua boca de linho sobre a minha boca 
Austera. Toma-me AGORA, ANTES 
Antes que a carnadura se desfaça em sangue, antes 
Da morte, amor, da minha morte, toma-me 
Crava a tua mão, respira meu sopro, deglute 
Em cadência minha escura agonia. 

Tempo do corpo este tempo, da fome 
Do de dentro. Corpo se conhecendo, lento, 
Um sol de diamante alimentando o ventre, 
O leite da tua carne, a minha 
Fugidia. 
E sobre nós este tempo futuro urdindo 
Urdindo a grande teia. Sobre nós a vida 
A vida se derramando. Cíclica. Escorrendo. 

Te descobres vivo sob um jogo novo. 
Te ordenas. E eu deliquescida: amor, amor, 
Antes do muro, antes da terra, devo 
Devo gritar a minha palavra, uma encantada
Ilharga 
Na cálida textura de um rochedo. Devo gritar 
Digo para mim mesma. Mas ao teu lado me estendo 
Imensa. De púrpura. De prata. De delicadeza.

II

Tateio. A fronte. O braço. O ombro. 
O fundo sortilégio da omoplata.
Matéria-menina a tua fronte e eu 
Madurez, ausência nos teus claros 
Guardados. 

Ai, ai de mim. Enquanto caminhas 
Em lúcida altivez, eu já sou o passado. 
Esta fronte que é minha, prodigiosa 
De núpcias e caminho 
É tão diversa da tua fronte descuidada. 

Tateio. E a um só tempo vivo 
E vou morrendo. Entre terra e água 
Meu existir anfíbio. Passeia 
Sobre mim, amor, e colhe o que me resta:
Noturno girassol. Rama secreta. 
(...)



[Júbilo memória noviciado da paixão (1974)]
[in Poesia: 1959-1979/ Hilda hilst. - São Paulo: Quíron; (Brasília): INL, 1980.]
 

1.3.13

Beija-flor




de repente
na casa
um hiato alado

veio beijou a (in)
fertilidade em flores artificiais
(de cerâmica/plástico)

veio des
montou dis
tâncias

veio ques
tionou
certezas

veio célere
- célere
foi-se

: a casa voltou a ser

rotina


[Wilson Torres Nanini]

23.2.13

BILHETE


Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim...

[Quintana]