28.2.14

desenho sorrisos

de papel
no espelho
da tua rotina

O Aprendiz



Sou pobre realmente.
Tenho apenas algumas folhas de papel na alma
E uma vontade — digamos, mansa —
De hipnotizar borboletas.
Oue coisa sei da vida?
Pouca coisa sei da vida.
O bastante para não correr.

Affonso Manta

A.

Antes de sair escute a última canção
esquece as carícias e o nosso silêncio salgado
pendurei as fotos no varal


F.

21.2.14

E sobretudo olhar com inocência. 
Como se nada se passasse, o que é certo.

[Alejandra Pizarnik]

16.2.14


Fluxo


Hilda Hilst

Não te machuque a minha ausência, meu Deus,
Quando eu não mais estiver na Terra
Onde agora canto amor e heresia

Outros hão de ferir e amar
Teu coração e corpo. Tuas bifrontes
Valias, mandarim e ovelha, soberba e timidez

Não temas.
Meus pares e outros homens
Te farão viver destas duas voragens:
Matança e amanhecer, sangue e poesia.

Chora por mim. Pela poeira que fui
Serei, e sou agora. Pelo esquecimento
Que virá de ti e dos amigos.
Pelas palavras que te deram vida
E hoje me dão morte. Punhal, cegueira

Sorri, meu Deus, por mim. De cedro
De mil abelhas tu és. Cavalo-d'água
Rondando o ego. Sorri. Te amei sonâmbula
Esdrúxula, mas te amei inteira.



15.2.14

Escrevias pela noite fora. Olhava-te, olhava 
o que ia ficando nas pausas entre cada 
sorriso. Por ti mudei a razão das coisas, 
faz de conta que não sei as coisas que não queres 
que saiba, acabei por te pensar com crianças 
à volta. Agora há prédios onde havia 
laranjeiras e romãs no chão e as palavras 
nem o sabem dizer, apenas apontam a rua 
que foi comum, o quarto estreito. Um livro 
é suficiente neste passeio. Quando não escreves
estás a ler e ao lado das árvores o silêncio
é maior. Decerto te digo o que penso
baixando a cabeça e tu respondes sempre
com a cabeça inclinada e o fumo suspenso
no ar. As verdades nunca se disseram. Queria
prender-te, tornar a perder-te, achar-te
assim por acaso no meu dia livre a meio
da semana. Mantêm-se as causas iguais
das pequenas alegrias, longe da alegria, a rotina
dos sorrisos vem de nenhum vício. Este abandono
custa. Porque estou contigo e me deixas
a tua imagem passa pelas noites sem sono,
está aqui a cadeira em que te sentaste
a escrever lendo. Pudesse eu propor-te
vida menos igual, outras iguais obrigações.
Havias de rir, sair à rua, comprar o jornal.

Helder Moura Pereira
[De Novo as Sombras e as Calmas]

8.2.14

Descobriu-se no Outono
(beijo com um beijo frio
uma pedra de Lua nova)

a concubina de Paris
bebia chá-mate
(aquilo que sou e sou p’ra alguns
não é o que sou e sou para outros)
entre o fumo de cigarrilhas
e acamava uma cave
(as Lágrimas querem romper-te como um fio de
vento às árvores)
com um som baixo de acordeão triste

recolho os círculos que vi no chão e descanso-os
nos meus braços.

Jorge vaz nande

6.2.14

Testamento Lírico




Se quiserem saber se pedi muito
Ou se nada pedi, nesta minha vida,
Saiba, senhor, que sempre me perdi
Na criança que fui, tão confundida.
À noite ouvia vozes e regressos.
A noite me falava sempre sempre
Do possível de fábulas. De fadas.
O mundo na varanda. Céu aberto.
Hilda, em 1933, aos 3 anos de idade
Castanheiras douradas. Meu espanto
Diante das muitas falas, das risadas.
Eu era uma criança delirante.
Nem soube defender-me das palavras.
Nem soube dizer das aflições, da mágoa
De não saber dizer coisas amantes.
O que vivia em mim, sempre calava.

E não sou mais que a infância. Nem pretendo
Ser outra, comedida. Ah, se soubésseis!
Ter escolhido um mundo, este em que vivo,
Ter rituais e gestos e lembranças.
Viver secretamente. Em sigilo
Permanecer aquela, esquiva e dócil.
Querer deixar um testamento lírico
E escutar (apesar) entre as paredes
Um ruído inquietante de sorrisos
Uma boca de plumas, murmurante.

Nem sempre há de falar-vos um poeta.
E ainda que minha voz não seja ouvida
Um dentre vós, resguardará (por certo)
A criança que foi. Tão confundida.
- Hilda Hilst