29.10.09

Intervalo



















Identifiquei tua chegada
pelas seis primeiras notas
dos teus passos, leves como
o intervalo das notas numa
harpa.

Identifiquei tua chegada
pelas pausas entre as tuas
pisadas, e por minha respiração
entrecortada.

Identifiquei tua chegada
pelo ruído de teus dedos
coçando as unhas recém
pintadas de rosa salpicado
de prata.

Identifiquei tua chegada
logo que meus olhos
marejaram,
antes que eu pudesse
ver sombra vulto ou
silhueta.

Identifiquei tua chegada
pela rispidez da paz que
se me impôs, assim, do
nada.


(Marcelo Novaes)



23.10.09

Pretinho Básico


(por Fabrício Carpinejar)

Ter um gato perto é quase uma escolha filosófica, uma postura reflexiva. Ganhou o eleitorado lírico pela sua independência e cotidiano autônomo. Por circular entre mundos. Pelas sete inesgotáveis vidas. Como parece que não está nem aí para o que está acontecendo, excita a meditação e os símbolos. O gato já é um poema naturalmente, inescrutável, dono de uma discrição absoluta. Facilita inúmeras interpretações.
A paulista Orides Fontela (1940-1998) demonstrava um fascínio pelas criaturas de bigodes, investigou seu domínio misterioso tanto em "Helianto" (1973) quanto em "Teia" (1996). Considerava o animal como um visitante, que não se entrega à submissão e ao controle. Tanto que gato não usa coleira, usa colar.

"na casa
o imperecível mito
se aconchega
quente (macio) ei-lo
em nossos braços"


O cachorro protege a residência, o gato protege a solidão. O cachorro mendiga afeto, o gato seduz com a distância. A sensação é que o cachorro é fofoqueiro, quer contar algo sempre, o gato já é um confidente, que escuta e guarda, protetor dos segredos. Nasceu com a batina no pêlo.

Concilia a dupla personalidade com perfeição. Sadiamente bi-polar. Em “Livro de Auras” (Iluminuras, 1994), Maria Lúcia Dal Farra tenta registrar sua rápida transformação, essa metamorfose súbita, a migrar de repente da maior inércia para elasticidade de um acrobata. Define o bichano como "um viveiro de alheios". Está com um olhar aqui, atento aos mínimos movimentos próximos, e outro acolá, em pensamentos longínquos.

Chacal, em sua antologia premiada "Belvedere" (Cosac Naify/7 Letras), traduz essa contemplação suficiente. Nem é bem um olhar, significa uma admiração.

"o gato lhe acompanha
onde quer que você vá
só com olhos

para ele basta olhar."

Os gatos são os filhos dos tigres de Jorge Luís Borges, netos dos tigres de William Blake. Herdaram a floresta, resíduos elegantes do mato. Sábios, professam sabedorias em fachada de esfinge.

*  sou uma mulher que frequenta telhados.



Caminhar... Caminhar













Toda sua infância fora franzida pelo ar frio que doía o nariz com gélido ardor; via a si mesma como de longe, pequena [...] Tendo experimentado a doçura da fascinação e da obediência ardente [...] e fraca ansiava agora entregar-se a força de outro destino. Lispector

Lejos / lejos

20.10.09

Excessos






Deixar-se morder é a condição lenta de dissolvência
. Simples assim. O resto é silêncio.

17.10.09

"Olaria Portuguesa: Do Fazer ao Usar"


Talvez o encanto da olaria seja derivado da magia da sua criação. O sabermos ter sido, numa fase de gestação, matéria dúctil que facilmente obedece ao tacto das mãos, que se pode modelar e voltar a modelar, e que, pela acção do fogo se transforma em matéria consistente, imutável, mas, simultaneamente, frágil e quebradiça.

Talvez o encanto da olaria seja sensorial. Uma bela peça de barro, como uma bela peça de escultura, convida-nos a senti-la, a afagá-la, a passar sobre ela as mãos, sentindo o seu peso, a sua ondulação, a rugosidade ou a maciez da sua superfície.

Talvez o encanto da olaria seja derivado da beleza das formas que possui, originadas nos gestos de muitos homens, nos usos de outros tantos, que foram apurando as formas, que foram afeiçoando o imperfeito até transformar as peças em autênticas obras-primas.

(pelas palavras trocadas com aquele que cuida dos versos e reversos da minha alma)

Rastrelli Cello Quartett Piazzola

Diagnóstico

"Não sou reta
Gosto da madrugada
Me encanto
com peculiaridades,
dispenso formalidades,
admiro a sensatez
_ e quem a deixa às vezes,
com honestidade -
Prefiro sempre viajar
Nem que seja
com um vinho bordeaux
Não vivo na superfície
Recuso o que não me toca

Mas meu corpo deseja mais
do que minha cabeça pode
E minha cabeça pensa mais
do que o meu corpo suporta

Não posso me apaixonar
Porque sou viciada"

13.10.09

Tempo

-Quando a noite chegar cedo e a neve cobrir as ruas, ficarei o dia inteiro na cama pensando em dormir com você.
-Quando estiver muito quente, me dará uma moleza de balançar devagarinho na rede pensando em dormir com você.
-Vou te escrever carta e não te mandar.
-Vou tentar recompor teu rosto sem conseguir.
-Vou ver Júpiter e me lembrar de você.
-Vou ver Saturno e me lembrar de você.
-Daqui a vinte anos voltarão a se encontrar.
-O tempo não existe.
-O tempo existe, sim, e devora.
-Vou procurar teu cheiro no corpo de outra mulher. Sem encontrar, porque terei esquecido. Alfazema?
-Alecrim. Quando eu olhar a noite enorme do Equador, pensarei se tudo isso foi um encontro ou uma despedida.
-E que uma palavra ou um gesto, seu ou meu, seria suficiente para modificar nossos roteiros.


Caio Fernando Abreu in "O Dia que Júpiter encontrou Saturno"

Capítulo XX - Intimidade



nos lugares que percorro, haverá sempre esse sorriso fácil e que vc conhece, uma lágrima doce, rugas, um olhar de sono e outro de acordar, um suspiro, um delírio e uma voz que haverá sempre de contar aos meus pensamentos a nossa história.

in Bernardes

12.10.09

Mémórias

[...] meu coração batia bongô, um ritmo desconhecido, embriagante, escandaloso. O tecido leve do vestido cedeu, transformando-se em espuma ao se encharcar com aquela água morna que parecia lamber a minha pele. [...] Que gosto bom tem o desejo ! Molhada até os ossos, porém sem frio, cheguei próximo ao som, podia tocá-lo com as pontas dos dedos. Havia algumas folhas entre a música e eu. Iniciei a dança tantas vezes ensaiada em frente ao fogão, cantei em voz alta músicas desconhecidas, e senti um abismo fundo se abrir. Senti o sangue correr vermelho nas veias. Chorei gotas de canela, amora, camélias brancas. Eu estava entregue. E não foi preciso sequer levantar as folhas para ver o segredo. Ele havia grudado em meu corpo. E havia de sair apenas quando as chamas fossem altas.

*extraído das páginas amarelas do "papel manteiga para embrulhar segredos"

11.10.09

Maestria

Coisa mais antiga. Amanheci Bossa Nova.
Não é nostalgia. É felicidade serena.
Um sentimento ébrio, boêmio e bom. Que se acaba às oito, eu sei.
Aí vivo uma nota só. Que nem samba é...
Veja bem. Não é que eu não goste desta afinação monocrática. Um toque de sol tem o seu prazer.
Mas é só isto: um sol eternizado.
Eu gosto mesmo é da harmonia do crepúsculo. Nada ruidosa. Mas múltipla. E, principalmente, momentânea. Essa instabilidade me fascina. É o encanto do imprevisível. Tão perfeito no instante, quanto efêmero.
O giro que se completa.
Já são seis. Regresso para o centro. Uma plenitude solitária. Uma sensação de volta que me deixa livre. É o tom da minha vida.
Sorrio, feliz.

9.10.09

Esses pés


Esses dias girando/ girando para as coisas do mundo, tenho encontrado tanta gente por essas terras, o Homem do Cinema Novo, Bugrinha de lençois, a melemolência do Simonal, tudo no encantamento da Palavra Encantada e a chuva não deixou eu assistir a festa da menina morta e eu fiquei sentida, de sentir.


(Pés da pequena Sophia)

5.10.09

Um estar



Retomar


os

Passos

Sentir chegar
Silêncio de estar

Pisar o chão, permanecer... Em casa, sempre